
Lusíadas, Canto X:118
...
Mas os Anjos do Céu, cantando e rindo,
Te recebem na Glória, que ganhaste.
...
Nesse tempo eram os anjos a cantar e rir. Séculos depois, o cantando e rindo passa para os coros da mocidade "que passava". Depois, já apenas decénios depois, surge em pleno o playback, que dava vontade de rir, quando havia dessincronizações. Uns não cantavam e talvez se rissem por dentro, enquanto o público ouvinte se ria por fora. Mais uns anitos, com o karaoke, o inverso do playback volta a cantar-se e a rir-se. É o cúmulo do riso, quando o karaokista consegue ser melhor que a voz original, toda ela trabalhada em estúdio. Em geral é a galhofa, ou o coro tipo carmina burana desconchavada.
O cantar e rir sofreu realmente um queda vertiginosa, numa espiral descendente tal que mudou do português para o inglês e depois para japonês! Um japonês de que só tinhamos de cor e na ponta da língua o poético "sayonara" ou o esquivo e golpeante"judo". Kara 空 "vazio," e ōkesutora オーケストラ "orquestra", juntaram-se para dar KARAOKE.
É nesse patamar de cantar e rir que ficámos até hoje. Patamar Karaoke, em grandes jantaradas entre grupos de amigos, festas de família. Já chegou a ser moda e modalidade internacional, , que irrompeu no mundo dos finais dos anos 90, fez abrir espaços e bares, mas agora só mantém forte implantação no Oriente.
KARAOKE. E foi num rasgo criativo de Dennis Potter que ascendeu à imagem, passou pelos anos 90 pelos ecrãs das Tvs de então. Oriunda da BBC a série foi vista por cá na RTP, dois, se não me engano. Dennis Potter tornou-se argumentista ao saber, nos anos 60, na Inglaterra, que sofria de uma doença que o imobilizou progressivamente. Acabou com membros, mãos e dedos, tolhidos. Na TV fez séries como The Singing Detective, Lipstick On Your Collar e acabou com o Karaoke, seguido de Cold Lazarus, duas séries que acompanharam a fase terminal da doença, e tudo por cá passou nos ecrãs da RTP.
Karaoke, a série, acompanha o percurso dos dias em que o diagnóstico terminal é declarado, ao autor e ao personagem. Um escritor, com êxito como argumentista de séries para rádio e TV, protagonizado por Albert Finney. Acompanha-se a vida dele em quatro episódios, um para cada dia de uma semana londrina, até lhe diagnosticarem um cancro no pâncreas. Acontece que este argumentista tinha uma série já em fase de montagem chamada Karaoke, mas há desentendimentos quanto à história entre ele e o realizador (jovem americano), subsidiado em milhões pela esposa, uma matrona de alta sociedade, antes viúva e muito herdada. O realizador acabou por se enrolar com a actriz principal, uma jovem inglesa que saíu do mundo (submundo) dos modelos para o seu primeiro papel. E foi escolhida pela sua espontaneidade, beleza e tiques de linguagem, atitudes e expressões da classe mais baixa.
É complicado? Pois é, mais ainda porque o escritor começa a ficar angustiado com coincidências entre a série que está já filmada e em vias de montagem e a vida real . Vai parar a um bar Karaoke atrás de uma jovem que reacendeu a chama do seu coração, e o fez recordar os seus tempos de adolescente apaixonado, evocado pela música "A Teenager in Love". Que lhe assoma aos lábios, a cada passo, a cada dor excruciante que o faz crispar todo, a qualquer momento, em qualquer lugar. E o bar do Karaoke é de um sujeito e que tem exactamente o nome que ele deu ao dono do bar de Karaoke da série que escreveu, e o protector da estrela que se envolveu com o realizador. E que vai aproveitar para lançar uma operação de chantagem sobre o embeiçado americano.
O patamar Karaoke do nosso cantando e rindo entra aqui em fase de delírio de imagens, visões, sons, encontros-ao-encontrão, encontros-choque, os abismos se aprofundam aceleradamente de moda para moda, meio para meio, classe para classe, infra-classe para infra-classe. Mas o escritor tenta atravessar tudo, no momento em que se agrava a sua condição física, para manifestar à jovem que lhe abriu a visão esse incomunicável facto, para estranheza total dela.
Numa sociedade em incomunicação brava, canta-se e ri-se as palavras de outros no karaoke sob fundo musical. E quando o autor habituado a pôr palavras na boca de personagens começa a ter a noção que as pessoas vivas estão a decalcar partes do diálogo que ele inventou? Uma perplexidade que vai invadindo o argumentista que vê a saúde agravar-se, passa pelas urgências do hospital, falta a compromissos inadiáveis com a montagem da série Karaoke, que a realidade parece disposta a imitar ponto por ponto, até na coincidência do nome do dono do bar. Problema grave, que pode impedir a série filmada de ir para o ar, sob pena de ter de enfrentar um processo judicial do dono real do bar, um tiranete do inframundo em fase ascensional, podre de rico. O chantagista.
E depois de subir ao palco e pegar no microfone para fazer uma aplaudida interpretação de "Pennies from Heaven", popularizado por Bing Crosby que aparece o "Happy End". Só no hospital, deixou vir a ronda da medicação, assegurou-se que tudo sossegava, trajou-se, muniu-se de uma arma carregada, e saíu pelas traseiras. No bar, depois de aplaudido foi convidado pelo dono, o tal que tinha o mesmo nome, para ir ao seu escritório. Queria ele ser o mentor de uma nova estrela da canção, o argumentista. Que o deixou falar até que lhe apontou a arma à testa e pôs fim à história em quatro dias/episódios. Um Happy End que não acabou em bem, mas em BANG.


Sem comentários:
Enviar um comentário