quinta-feira, 17 de setembro de 2009

O preto no branco sobre cores


Porque a vida é descolorida, vamos falar das cores que falamos sem dar por isso de cor. São cores quase invisíveis, que só falando aparecem. A começar pelo preto, para nos irmos habituando. E, coisa engraçada: dizer um preto, ou um negro, é muito diferente, mas a cor é a mesma, a raça também. O sentido é que difere e muito. Se for pretinho, a cor mantém-se assim como a raça, mas se for negrito, entra-se no mundo da letra impressa e do grafismo. O negrito e é um tipo de letra mais carregado do que o padrão normal.

Mas vivemos num mundo em que se fala cada vez mais de "Verde" e "Verdes". Talvez porque está tudo muito verde, ainda a fruta não amadureceu... e contudo já não se pode ouvir falar de Verde, é uma conversa repetida à exaustão, que farta. Console-mo-nos então com o Verde-Esperança, nas bandeiras. E com o "Está Verde" e é passar.

E o encarnado no sinal? Impacientamo-nos, desesperamos, calma. Passou um vermelho...Não, passou no amarelo, que logo passou a vermelho. Há os encarnados na bola e os vermelhos na política. A bola tem verdes, azuis, azuis e branco, além de todas as cores reais que aparecem nos campos. Mas os rosas e os laranjas só aparecem na política.

Com os amarelos volta a raça. Brancos, amarelos, pretos, vermelhos. Na doença amarelo é icterícia, branco é palidez, verde uma grande má disposição. E ficar muito encarnado, é ruborizar, quando o sangue aflui ao rosto por força da emoção. Se fosse a ti, pintava-me de preto! É a vergonha.

Cores e gostos não se discutem, dirá um provérbio. Mas quando as cores dão passam por raças, pela política o contrário é que é proverbial. Afinal as cores, fenómeno da luz natural, que os sábios e cientistas estudam, estudam, como se presta a tanta imagem mental automática e sem cor?

Vejo tudo azul!
A coisa aqui está preta! Fazem falta cores quentes, alegres, vivas. Trata-se de avivar as cores que entram na fala quotidiana pela conveniência de catalogar, de repartir por um espectro racial, político, simbólico. Metáforas antigas de cores apagadas.

Há cores na Geografia: Castelo Branco, Vila Verde. Nos apelidos há Brancos, Pretos, Verdes. E um Verde se destaca para acabar em poema, onde a palavra mais sombria tem sempre mais cor. No Loira, é a cor do cabelo.

Loira

Eu descia o Chiado lentamente
Parando junto às montras dos livreiros
Quando passaste irónica e insolente,
Mal pousando no chão os pés ligeiros.

O céu nublado ameaçava chuva,
Saía gente fina de uma igreja;
Destacavam no traje de viúva
Teus cabelos de um louro de cerveja.

E a mim, um desgraçado a quem seduzem
Comparações estranhas, sem razão,
Lembrou-me este contraste o que produzem
Os galões sobre os panos de um caixão.

Eu buscava uma rima bem intensa
Para findar uns versos com amor;
Olhaste-me com cega indiferença
Através do lorgnon provocador.

Detinham-se a medir tua elegância
Os dandies com aprumo e galhardia;
Segui-te humildemente e a distância,
Não fosses suspeitar que te seguia.

E pensava de longe, triste e pobre,
Desciam pela rua umas varinas
Como podias conservar-te sobre
O salto exagerado das botinas.

E tu, sempre febril, sempre inquieta,
Havia pela rua uns charcos de água
Ergueste um pouco a saia sobre a anágua
De um tecido ligeiro e violeta.

Adorável! Na idéia de que agora
A branda anágua a levantasse o vento
Descobrindo uma curva sedutora,
Cada vez caminhava mais atento.

Mas súbito parei, sentindo bem
Ser loucura seguir-te com empenho,
A ti que és nobre e rica, que és alguém,
Eu que de nada valho e nada tenho.

Correu-me pelo corpo um calafrio,
E tive para o teu perfil ligeiro
Este olhar resignado do vadio
Que fita a exposição de um confeiteiro.

Vi perder-se na turba que passava
O teu cabelo de ouro que faz mal;
Não achei essa rima que buscava,
Mas compus este quadro natural.

Atribuído a Cesário Verde, in 'O Livro de Cesário Verde'

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